INDIVIDUALIDADE COLETIVA


    São dezenove horas do horário de Brasília, estou na Av. das Américas, principal autopista da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Olho em torno de mim e vejo carros enfileirados, parados, engarrafados. A maioria deles está com os vidros fechados, ar condicionado ligado e com aquele bom insulfilm em nome da privacidade e da segurança. Alguns buzinam, todos sofrem da mesma queixa. Vontade de chegar ao seu destino, sair daquela condição limitadora e estressante. O curioso de se pensar é que a demanda de tantos carros na rua é o que justamente corrobora para o fluxo intenso de carros e consequentemente, um volume maior de trânsito. É incrível de pensar que cada carro ali, que podem levar em média cinco pessoas, são ocupados apenas pela unidade do motorista – sim, justamente aquele sujeito com os vidros fechados, tampado e lacrado no insulfilm. O perímetro que ocupam em média dois carros é equivalente ao de um ônibus que suporta levar pra lá de cinquenta pessoas.

    O fator conforto justifica em defesa da alienação sobre as rodas. Mas se apenas recortarmos o fenômeno em si, veremos uma gama de pessoas isoladas em suas capsulas motorizadas, multiplicando um excessivo gasto de combustível , ausentando-se de qualquer responsabilidade ambiental e ecológica – mesmo que isso implique à sua própria condição de vida – expostos a mesma condição, ao mesmo problema, ao mesmo incômodo, fazendo as mesmas queixas, e repercutindo num mesmo problema, comum a todos.

    O que seria isso senão uma individualidade coletiva? São pessoas fechadas, sustentadas na teoria do exclusivo, sofrendo em comum com o caótico engarrafamento, compartilhando de uma, duas, três horas num mesmo local, convivendo lado a lado, todas ali, sem trocar uma palavra, sem perceber na empatia e na semelhança das necessidades, apenas focados em acelerar, cortar, aproveitar o sinal aberto. A massa de pessoas individualizadas sofrendo coletivamente é enorme, é extensa e o pior, é imperceptível. A culpa costuma sempre ser do governo mesmo. Então reclamamos de tudo, de obras, da arquitetura da cidade, do funcionamento da guarda de trânsito, em onde a culpa couber. Mas o contexto alienado da individualidade nossa de cada dia, nos embalsama de um modo tão egoísta de sobrevivência que se quer nos damos conta que aquela agonia frente ao trânsito está sendo compartilhada por centenas de pessoas que nossas janelas blindadas ao mundo não nos deixa perceber estar ali.

    Não conversamos, não trocamos, ouvimos, mas incrivelmente, sem qualquer inteiração, fazemos todos parte e colaboramos todos igualmente para o fenômeno acontecer. Sócios incomunicáveis. E assim dividimos algumas horas diárias com estranhos. Assim como os incríveis amigos de redes sociais, que se curtem, se exibem, se comentam numa intimidade tão calorosa quanto a tela do seu smartphone. É uma alegria que não precisa mais de pulos, entusiasmo e gritos. Basta uma foto postada e a tudo se estabelece ali. Seria justificável se caso ali, em frente à pessoa, não estivesse também outra pessoa, feita de carne e osso, curvado numa sincronia veloz de teclas e dedos. Ficamos mais uma vez individualizados coletivamente quando sentados numa mesa de bar, nos mantemos presos aos nossos perfis na internet e deixamos de nos apresentar como sujeitos de ação. Neste momento trocamos o sujeito pelo objeto, literalmente.

    E vai ver, é neste mesmo processo de inacessibilidade ao outro que se formem as queixas rotineiras de homens e mulheres, que reclamam a busca por um bom parceiro. Se tantos reclamam da mesma coisa, se tantos buscam um relacionamento sério, por que são tantos os que dizem que não conseguem encontrar?? Por que será que estas mesmas pessoas com estas mesmas queixas não conseguem se encontrar entre si? Onde estão estas pessoas que querem uma relação de verdade na hora que vão se relacionar numas primeiras saídas com a pessoa que conheceu há duas semanas atrás? Onde vai parar esta essência que quer carinho e companheirismo quando chega ao tête-à-tête?

    A impressão que nos passa é de que a blindagem humana cria certas armaduras que deixam o humano literalmente inacessível. Nos encapsulamos em nós mesmos, fechados em nossas próprias verdades, assim como as configurações de privacidade de nossas redes sociais, encarcerados na pseudoliberdade de não ser como se é em essência. Nos engaiolamos, empoleirados, um ao lado do outro, como se fossemos pássaros em cativeiro, ouvindo, sem poder olhar, o canto do outro ao lado, que está ali com você, fechado, lacrado ao mundo. Sem trocas, sem sentimentos, sem intimidade, ficamos segregados na mesma dor de sermos individualizados. Sugados na mesma corrente, de uma frieza coletiva, que nos mostra que mesmo tentando negar nossa natureza gregária em prol de uma robotizada defesa, o humano, enquanto espécie, enquanto ser, enquanto vida, tem a qualidade de compartilhar. Hoje, na era do discreto, do politicamente correto e do ponderação emocional, experimentamos um tipo mais sofisticado de compartilhamento: A INDIVIDUALIDADE COLETIVA.


Por Catherine de Almeida Plata
Psicóloga
CRP: 05/42594